- As Origens da Escrita Sagrada e a Tradição Oral Primitiva
- O Antigo Testamento: A Septuaginta e os Deuterocanônicos
- A Gênese do Novo Testamento: Cartas, Evangelhos e Atos
- Os Primeiros Desafios e a Necessidade de Discernimento
- Critérios de Canonicidade e a Tradição Apostólica
- Sínodos e Concílios: A Consolidação do Cânon
- A Vulgata e a Disseminação do Cânon Ocidental
- A Reforma Protestante e o Concílio de Trento
- A Importância Duradoura do Cânon Católico
A Bíblia, para milhões de católicos em todo o mundo, não é apenas um livro, mas a Palavra inspirada de Deus, um guia para a fé e a moral. No entanto, a composição desta vasta coleção de textos sagrados não foi um processo instantâneo, mas o resultado de um discernimento cuidadoso e um desenvolvimento histórico que abrange séculos. O cânon católico, que define quais livros são considerados divinamente inspirados e formam a Escritura Sagrada, é uma testemunha da profunda reflexão teológica e pastoral da Igreja ao longo de sua história. Este artigo explora a fascinante jornada de como a Igreja Católica estabeleceu os limites da Bíblia que lemos hoje, desde as primeiras tradições orais até as definições conciliares.
As Origens da Escrita Sagrada e a Tradição Oral Primitiva
Antes de qualquer formalização canônica, as verdades divinas eram transmitidas por meio de tradições orais. No contexto do Antigo Testamento, as narrativas sobre a criação, os patriarcas, o êxodo e a Lei mosaica foram inicialmente transmitidas de geração em geração. Gradualmente, essas tradições começaram a ser registradas, dando origem aos livros que hoje conhecemos. A compilação e edição desses textos foram processos longos e complexos, envolvendo escribas, profetas e sacerdotes, culminando na formação da Torá (Pentateuco), dos Profetas (Nevi’im) e dos Escritos (Ketuvim), as três divisões da Bíblia Hebraica (Tanakh).
De forma análoga, no Novo Testamento, a mensagem de Jesus Cristo foi inicialmente proclamada pelos Apóstolos e seus discípulos por meio da pregação oral. As experiências e ensinamentos de Jesus, sua morte e ressurreição, foram testemunhados e partilhados. À medida que as comunidades cristãs cresciam e se espalhavam, a necessidade de registrar esses testemunhos tornou-se evidente, resultando na escrita dos Evangelhos e das Epístolas apostólicas. Este estágio inicial de composição das Escrituras, tanto hebraicas quanto cristãs, fundamentou o que viria a ser o futuro cânon.
O Antigo Testamento: A Septuaginta e os Deuterocanônicos
A formação do cânon do Antigo Testamento dentro da Igreja Católica tem suas raízes na tradição judaica, mas com uma distinção crucial. A Igreja Primitiva, predominantemente falante de grego, adotou a versão da Bíblia hebraica conhecida como Septuaginta (LXX). A Septuaginta é uma tradução grega dos textos hebraicos, produzida entre os séculos III e I a.C. em Alexandria, Egito. Esta versão era amplamente utilizada pelos judeus da Diáspora e pelos primeiros cristãos, sendo a escritura citada pela maioria dos autores do Novo Testamento e pelos Padres da Igreja.
A Septuaginta continha diversos livros que não faziam parte da versão hebraica mais restrita (o cânon palestino, posteriormente adotado pelo judaísmo rabínico e pela Reforma Protestante), mas que eram considerados sagrados por muitos judeus helenísticos. Estes livros são conhecidos na tradição católica como deuterocanônicos (segundo cânon) e incluem Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, 1 e 2 Macabeus, e algumas adições a Ester e Daniel. Para a Igreja Católica, esses livros são tão inspirados quanto os protocanônicos (primeiro cânon) e foram integrados em sua Bíblia desde os primeiros séculos. Esta aceitação diferencia o cânon católico do Antigo Testamento do cânon judaico e protestante, que não incluem os deuterocanônicos.
A Gênese do Novo Testamento: Cartas, Evangelhos e Atos
A escrita do Novo Testamento ocorreu principalmente na segunda metade do século I d.C. As primeiras composições foram as cartas de São Paulo, dirigidas a comunidades cristãs específicas para instrução, correção e encorajamento. Estas epístolas eram lidas publicamente e circulavam entre as igrejas, sendo rapidamente reconhecidas como portadoras de autoridade apostólica.
Posteriormente, surgiram os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, que registraram a vida, os ensinamentos, os milagres, a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Cada Evangelho oferece uma perspectiva única e complementar, essencial para a compreensão da pessoa de Cristo. O livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, narra a expansão da Igreja primitiva após a ascensão de Jesus e o papel dos Apóstolos. Outras epístolas, como as de Pedro, Tiago, João e Judas, e o Livro do Apocalipse, foram também produzidas, complementando o corpo de escritos que documentariam a fé e a prática da Igreja nascente. A circulação e aceitação gradual desses textos entre as comunidades cristãs pavimentaram o caminho para sua eventual canonização.
Os Primeiros Desafios e a Necessidade de Discernimento
No decorrer dos séculos II e III, a Igreja enfrentou diversos desafios que a impeliram a definir claramente quais escritos eram considerados Escritura Sagrada. O surgimento de heresias, como o marcionismo e o gnosticismo, foi um fator crucial. Marcião, no século II, rejeitou completamente o Antigo Testamento e grande parte do Novo Testamento, aceitando apenas uma versão editada do Evangelho de Lucas e dez epístolas paulinas. Os gnósticos, por sua vez, produziram uma vasta literatura de “evangelhos” e “atos” apócrifos, que apresentavam ensinamentos estranhos à fé apostólica.
Essas ameaças doutrinárias tornaram imperativa a necessidade de discernir e oficializar um conjunto de livros que verdadeiramente transmitissem a revelação divina e a tradição apostólica. Os líderes da Igreja, como Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna e Ireneu de Lyon, começaram a referir-se a coleções de escritos apostólicos como Escritura, distinguindo-os dos textos heréticos. Este processo inicial de reconhecimento estava enraizado na prática litúrgica e no consenso teológico das comunidades cristãs espalhadas pelo mundo romano.
Critérios de Canonicidade e a Tradição Apostólica
Para determinar a autenticidade e a inspiração divina dos livros, a Igreja Primitiva utilizou alguns critérios fundamentais, embora nem sempre formulados de maneira explícita e sistemática no início. Os principais foram:
- Apostolicidade: O livro deveria ter sido escrito por um apóstolo ou por um discípulo direto de um apóstolo (como Marcos para Pedro, Lucas para Paulo). Isso assegurava a conexão direta com as testemunhas oculares de Cristo.
- Ortodoxia: O conteúdo do livro deveria estar em conformidade com a fé transmitida pelos apóstolos e com a doutrina que a Igreja universal pregava. Não poderia contradizer os ensinamentos estabelecidos.
- Catolicidade: O livro deveria ser amplamente aceito e utilizado pelas igrejas em diferentes regiões do mundo cristão. Uma aceitação local limitada era um sinal de alerta.
- Uso Litúrgico Contínuo: A leitura pública do livro nas celebrações eucarísticas e na instrução catequética, ao longo do tempo, indicava sua santidade e autoridade para a comunidade.
Esses critérios não eram meramente formais, mas refletiam a crença de que o Espírito Santo guiava a Igreja em seu discernimento, preservando a pureza da revelação divina transmitida pelos apóstolos. A tradição apostólica, portanto, serviu como a bússola para a definição do cânon.
Sínodos e Concílios: A Consolidação do Cânon
Apesar de um consenso crescente sobre a maioria dos livros, a lista exata dos textos canônicos permaneceu com algumas pequenas variações regionais até o final do século IV. Foi nesse período que a Igreja, por meio de sínodos e concílios, começou a emitir declarações mais definitivas. Um marco importante foi o Sínodo de Roma, em 382 d.C., sob o Papa Dâmaso I, que é frequentemente associado a um decreto (o “Decreto Gelasiano”, embora a autoria seja debatida) que listava os 73 livros do cânon católico (46 do Antigo Testamento, incluindo os deuterocanônicos, e 27 do Novo Testamento).
Posteriormente, os Sínodos de Hipona (393 d.C.) e de Cartago (397 d.C.), no Norte da África, sob a influência de Santo Agostinho, reafirmaram essa mesma lista canônica. Essas decisões conciliares não “criaram” o cânon, mas formalizaram e ratificaram o que já era amplamente aceito e vivido pela maior parte da Igreja. Elas serviram para pôr fim às incertezas e fornecer uma lista autoritativa para toda a Igreja Ocidental.
A Vulgata e a Disseminação do Cânon Ocidental
Um desenvolvimento crucial para a consolidação e disseminação do cânon no Ocidente foi a tradução da Bíblia para o latim por São Jerônimo. Entre os anos 382 e 405 d.C., por encomenda do Papa Dâmaso I, Jerônimo dedicou-se a traduzir as Escrituras diretamente do hebraico (para o Antigo Testamento) e do grego (para o Novo Testamento) para o latim. Esta tradução ficou conhecida como a Vulgata (do latim vulgata editio, “edição popular”), e tornou-se a Bíblia padrão do cristianismo ocidental por mais de mil anos.
Embora São Jerônimo, inicialmente, tivesse algumas reservas sobre a canonicidade dos livros deuterocanônicos, devido à sua ausência no cânon hebraico, ele os incluiu em sua tradução por ordem papal, reconhecendo sua aceitação pela Igreja. A Vulgata, com seus 73 livros, foi fundamental para uniformizar a Bíblia em toda a cristandade latina, garantindo que a mesma coleção de textos sagrados fosse lida, estudada e meditada por gerações de fiéis, clérigos e teólogos, cimentando o cânon católico na mente e no coração da Igreja.
A Reforma Protestante e o Concílio de Trento
A definição formal e dogmática do cânon católico ocorreu no século XVI, em resposta aos desafios da Reforma Protestante. Líderes protestantes, como Martinho Lutero, questionaram a autoridade de vários livros, especialmente os deuterocanônicos do Antigo Testamento, adotando o cânon hebraico mais restrito (com 39 livros no Antigo Testamento) e movendo os deuterocanônicos para uma seção separada de “apócrifos”. Lutero também manifestou reservas sobre alguns livros do Novo Testamento, como Tiago e Apocalipse, embora não os tenha removido do seu cânon.
Em reação a essas inovações, o Concílio de Trento (1545-1563 d.C.), uma das assembleias mais importantes da história da Igreja, reafirmou solenemente a lista completa de 73 livros como divinamente inspirados, conforme tradicionalmente aceito pela Igreja desde os Sínodos de Hipona e Cartago. Em sua quarta sessão, em 1546, o Concílio publicou o Decreto sobre as Escrituras Canônicas, que não apenas listou os livros, mas também declarou que quem não aceitasse qualquer um deles como sagrado e canônico seria anátema. Essa declaração foi a primeira definição dogmática infalível do cânon bíblico para a Igreja Católica, tornando a lista de 73 livros uma questão de fé inegociável.
A Importância Duradoura do Cânon Católico
A história da formação do cânon católico é um testemunho da convicção da Igreja de que a revelação divina é transmitida e preservada sob a guia do Espírito Santo. O cânon não é meramente uma lista arbitrária de livros, mas o resultado de um processo de discernimento cuidadoso, fundamentado na tradição apostólica, na ortodoxia doutrinal e no uso litúrgico de séculos. Os 73 livros que compõem a Bíblia Católica representam a totalidade da Palavra de Deus inspirada, um tesouro que nutre a vida espiritual e doutrinal dos fiéis. A compreensão deste processo histórico aprofunda a apreciação pela riqueza e profundidade da herança bíblica da Igreja e reafirma sua autoridade como guardiã e intérprete da Palavra de Deus.

Sou um homem de fé que acredita em Deus. E quem não acredita, vive da sorte.
