As Raízes Bíblicas da Missa: A Fundamentação Escriturística da Liturgia Católica

A Missa Católica, centro e ápice da vida cristã, é frequentemente compreendida como uma realidade eminentemente tradicional. Contudo, sua estrutura, seus ritos e seu significado profundo estão intrinsecamente enraizados nas Sagradas Escrituras, desde as prefigurações do Antigo Testamento até a plenitude revelada no Novo Testamento. A compreensão dessas raízes bíblicas não apenas enriquece a participação litúrgica, mas também revela a continuidade do plano salvífico de Deus, culminando na Nova e Eterna Aliança estabelecida por Jesus Cristo. Este artigo propõe uma análise detalhada de como a Palavra de Deus molda e fundamenta cada aspecto da liturgia eucarística, demonstrando sua profundidade teológica e sua relevância perene.

A Missa como Culminação da História da Salvação no Antigo Testamento

Para discernir as raízes bíblicas da Missa, é imperativo revisitar as práticas e narrativas do Antigo Testamento que prefiguram o sacrifício de Cristo e a celebração eucarística. A história da salvação é permeada por atos de culto e sacrifício que apontam para a vinda do Messias e a instituição de um novo e perfeito culto.

Sacrifícios Prefigurativos

Desde os primórdios da humanidade, encontramos a oferta de sacrifícios a Deus. Abel ofereceu os primogênitos de seu rebanho (Gn 4,4), e Noé, após o dilúvio, edificou um altar e ofereceu holocaustos (Gn 8,20). Abraão, por sua vez, demonstrou sua fé inabalável ao estar disposto a sacrificar seu filho Isaac (Gn 22,1-18), um evento que é teologicamente interpretado como uma prefiguração do sacrifício do Filho de Deus. Esses sacrifícios, embora imperfeitos, manifestavam uma busca pela reconciliação com o divino e um reconhecimento da soberania de Deus.

A Páscoa judaica é, sem dúvida, a mais significativa prefiguração do mistério eucarístico. A libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, mediada pelo sangue do cordeiro pascal aspergido nas ombreiras das portas (Ex 12,1-28), é um evento central na narrativa bíblica. O cordeiro pascal, sem mácula e imolado, cujo sangue protegeu os primogênitos de Israel, antecipa claramente Jesus Cristo, o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), cujo sangue nos redime da escravidão do pecado e da morte.

No deserto, o maná, pão vindo do céu que sustentou os israelitas (Ex 16), é outra prefiguração explícita da Eucaristia, conforme o próprio Jesus afirmaria: “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que não morra quem dele comer” (Jo 6,49-50).

Sacerdócio e Culto no Templo

A Lei Mosaica estabeleceu um sistema elaborado de sacrifícios e rituais no Templo de Jerusalém, mediado por um sacerdócio levítico. Os sacrifícios diários, as ofertas de expiação, de ação de graças e de comunhão, todos apontavam para a necessidade de purificação e a busca pela comunhão com Deus (Lv 1-7). O Dia da Expiação (Yom Kippur), com o sacrifício do bode expiatório, simbolizava a purificação dos pecados de todo o povo (Lv 16). Embora eficazes para a antiga aliança, esses sacrifícios eram repetitivos e incompletos, necessitando ser renovados continuamente, pois não podiam “tirar os pecados de modo definitivo” (Hb 10,4).

Jesus Cristo: A Plenitude do Culto e do Sacrifício

Com a vinda de Jesus Cristo, a história da salvação atinge seu ponto culminante. Ele não apenas cumpre as promessas e prefigurações do Antigo Testamento, mas as transcende, instituindo a Nova e Eterna Aliança mediante seu próprio sacrifício.

A Última Ceia e a Instituição da Eucaristia

O evento central para a fundamentação bíblica da Missa é a Última Ceia, celebrada por Jesus com seus Apóstolos na noite anterior à sua paixão. Narrada pelos evangelhos sinóticos (Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,14-20) e por São Paulo (1 Cor 11,23-26), a Última Ceia revela a intenção de Cristo de instituir um memorial de sua morte e ressurreição. Ao tomar o pão e o vinho, dar graças, abençoá-los e distribuí-los, Jesus os identifica com seu corpo entregue e seu sangue derramado “em remissão dos pecados” e “para a nova e eterna aliança”.

As palavras de Jesus – “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19; 1 Cor 11,24-25) – não são meramente um pedido para recordar um evento passado. No contexto semítico, “fazer em memória” (anamnesis) implica tornar presente o evento salvífico. Assim, a Eucaristia não é apenas uma recordação, mas a atualização do sacrifício de Cristo na cruz, oferecido de uma forma incruenta.

O Sacrifício da Cruz: O Altar Definitivo

O sacrifício de Jesus na cruz é o ponto focal da revelação. Ele é o verdadeiro Cordeiro Pascal, cujo sacrifício perfeito e único (Hb 7,27; 9,12; 10,10) substitui todos os sacrifícios do Antigo Testamento. Na Missa, o sacrifício da cruz é tornado presente, de modo que a Igreja se une a Cristo em sua oferenda ao Pai. Não se trata de um novo sacrifício, mas da perpetuação do único e definitivo sacrifício de Cristo.

Os Discípulos de Emaús e a Liturgia

A narrativa dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) oferece um valioso modelo para a estrutura da Missa. Jesus caminha com os discípulos, explica-lhes as Escrituras, “começando por Moisés e todos os profetas” (Lc 24,27), e em seguida, “tomando o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-o a eles” (Lc 24,30). Esta sequência – Liturgia da Palavra e Liturgia Eucarística – é um eco claro da estrutura fundamental da Missa, onde os corações dos fiéis são aquecidos pela Palavra e seus olhos são abertos na fração do pão.

A Liturgia da Palavra: Encontro com Cristo Vivo

A primeira parte da Missa, a Liturgia da Palavra, possui profundas raízes bíblicas que remontam tanto às práticas judaicas da sinagoga quanto às primeiras comunidades cristãs.

Proclamação e Reflexão da Palavra

Nas sinagogas judaicas, a leitura da Torá e dos Profetas, seguida de uma exortação (cf. Lc 4,16-21; At 13,15), era uma prática central. As primeiras comunidades cristãs, seguindo esse modelo, dedicavam-se à “doutrina dos Apóstolos” (At 2,42), à leitura das Escrituras do Antigo Testamento interpretadas à luz de Cristo, e posteriormente, à leitura das epístolas apostólicas e dos evangelhos. A Igreja sempre reconheceu a Palavra de Deus como viva e eficaz (Hb 4,12).

Na Missa atual, a Liturgia da Palavra consiste em leituras do Antigo Testamento (ou Atos dos Apóstolos no Tempo Pascal), um Salmo Responsorial, uma leitura das Epístolas Apostólicas e, de modo proeminente, a proclamação do Evangelho. Esta sequência demonstra a continuidade da história da salvação e a progressiva revelação de Deus, culminando em Cristo. A homilia que se segue à proclamação da Palavra tem por objetivo aprofundar a compreensão dos mistérios divinos e aplicar a mensagem das Escrituras à vida dos fiéis.

Resposta da Assembleia

A resposta dos fiéis à Palavra de Deus, manifestada no canto do Salmo Responsorial, na aclamação ao Evangelho e na Profissão de Fé (Credo), também tem precedentes bíblicos. O povo de Israel frequentemente respondia com cânticos e profissões de fé após a leitura da Lei (cf. Ne 8,6). O Credo, por sua vez, sintetiza as verdades de fé reveladas na Escritura, consolidando a adesão da comunidade à verdade divina. As preces da comunidade, ou Oração dos Fiéis, ecoam as orações de intercessão encontradas em toda a Escritura (1 Tm 2,1-4).

A Liturgia Eucarística: Memorial, Sacrifício e Comunhão

A Liturgia Eucarística é o coração da Missa, onde o sacrifício de Cristo é atualizado e os fiéis entram em profunda comunhão com Ele. Sua estrutura e significado são intrinsecamente bíblicos.

Ofertório

O ofertório, ou preparação das oferendas, remonta à prática judaica de apresentar pão e vinho, elementos básicos da vida e da celebração, como oferendas a Deus. No Antigo Testamento, ofertas de cereais e vinho eram comuns (Nm 15,1-10). Na Missa, o pão e o vinho são apresentados e oferecidos, mas tornam-se, por meio da consagração, o Corpo e o Sangue de Cristo. O gesto de lavar as mãos do sacerdote lembra a purificação sacerdotal do Antigo Testamento (Ex 30,19-21), mas simboliza aqui a purificação interior necessária para celebrar os mistérios sagrados.

A Oração Eucarística (Anáfora)

A Oração Eucarística, ou anáfora, é o ponto culminante da Missa e é rica em referências bíblicas. É uma grande oração de ação de graças e santificação que segue o modelo da Ceia do Senhor:

  • Ação de Graças: O prefácio inicia a ação de graças a Deus Pai por suas obras de salvação, ecoando o “deu graças” de Jesus na Última Ceia (Lc 22,17-19).
  • Santo: O canto do Santo, ou Sanctus, é uma aclamação bíblica que une os fiéis aos anjos no louvor a Deus: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do Universo” (Is 6,3) e “Bendito o que vem em nome do Senhor!” (Sl 118,26; Mt 21,9).
  • Epiclese: A invocação do Espírito Santo sobre as oferendas (Epiclese) para que se tornem o Corpo e o Sangue de Cristo evoca o poder criador do Espírito de Deus no Antigo Testamento (Gn 1,2) e sua ação na Encarnação (Lc 1,35).
  • Narrativa da Instituição e Consagração: As palavras de Cristo na Última Ceia são repetidas pelo sacerdote, tornando o Corpo e o Sangue de Jesus presentes no altar. Esta é a essência do memorial eucarístico (1 Cor 11,23-26).
  • Anamnese: A Igreja faz memória da paixão, ressurreição e ascensão de Cristo, realizando o seu mandamento de “fazei isto em memória de mim”.
  • Oferenda: A Igreja, unida a Cristo, oferece a Deus o sacrifício do Filho, uma oferenda perfeita e agradável ao Pai.
  • Intercessões: Orações pela Igreja, pelos vivos e pelos falecidos, pelo Papa, bispos e todo o clero, refletindo o caráter universal da oração cristã e a comunhão dos santos.
  • Doxologia Final: Uma glorificação da Santíssima Trindade, concluída com o “Amém” da assembleia, que significa a adesão total e solene a toda a Oração Eucarística.

Fração do Pão e Comunhão

A fração do pão, um gesto significativo no contexto bíblico (Lc 24,30.35; At 2,42.46), antecede a comunhão. É o momento em que os discípulos de Emaús reconheceram o Senhor. A oração do “Cordeiro de Deus” (Jo 1,29) e a invocação “Senhor, eu não sou digno…” (Mt 8,8) preparam os fiéis para receber a Eucaristia. A Comunhão, o ápice da participação na Missa, é o banquete sagrado onde os fiéis se alimentam do próprio Corpo e Sangue de Cristo, recebendo o penhor da vida eterna e fortalecendo sua união com Ele e com a Igreja (Jo 6,53-58).

A Dimensão Escatológica da Missa

A Missa não é apenas um memorial do passado e uma presença do presente; ela também aponta para o futuro, para a dimensão escatológica do Reino de Deus.

O banquete eucarístico é um antegozo do banquete celestial prometido no fim dos tempos, quando Cristo retornará em glória. Jesus mesmo fala de “beber de novo no Reino de meu Pai” (Mt 26,29). A Missa é um penhor da glória futura, um vislumbre do céu na terra, onde a Igreja já participa da liturgia celeste, unindo-se aos anjos e santos no louvor a Deus. Cada vez que a Igreja celebra a Eucaristia, “anuncia a morte do Senhor, até que ele venha” (1 Cor 11,26), mantendo viva a esperança na Parusia.

Conexão com a Prática Litúrgica Atual

A riqueza das raízes bíblicas da Missa permeia cada gesto, cada palavra e cada momento da celebração litúrgica contemporânea. Desde a entrada solene, lembrando a peregrinação do povo de Deus, até a bênção final e o envio, que recorda a missão dos discípulos de levar a Palavra ao mundo, a Missa é um compêndio da história da salvação.

A participação consciente, plena e ativa na Missa exige uma compreensão de sua profunda fundamentação bíblica. Saber que cada leitura nos convida a ouvir a voz de Deus, que cada oração expressa a súplica da Igreja enraizada na fé dos Apóstolos, e que a Eucaristia é a concretização do sacrifício e da presença de Cristo, transforma a celebração em uma experiência de encontro vivo com o Senhor ressuscitado. Assim, a liturgia não é um conjunto arbitrário de ritos, mas a expressão viva da fé que brota da Palavra de Deus e nela encontra seu alimento e sua força.